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quarta-feira, 8 de julho de 2015

Resenha da Semana: O pintassilgo, de Donna Tartt




Uma essência triste. Assim posso falar da experiência/impressão que tive com a aclamada obra de Donna Tartt: O Pintassilgo. A autora em questão tem um ar de mistério e beleza, convenhamos que basta uma foto da mulher para que nos indaguemos quem é, onde vive? Etc. Donna é norte-americana do Mississipi, ganhou o Pulitzer com a obra que me desafiei a resenhar aqui (um imenso desafio, uma vez que ela foi resenhada milhares de vezes pelos grandes, médios e pequenos blogs, mas aqui é uma impressão apenas, calma amigos...). Todas as suas obras foram traduzidas pela Companhia das Letras, então temos acesso ao trabalho da escritora via uma editora que traduz bem e faz capas relativamente belas (sim, é um detalhe que me incomoda profundamente: a capa!). Aceitemos que ela desperta no meio crítico um incômodo: se você for pesquisar encontrará resenhas que amam e outras que odeiam a moça, umas que atribuem o sucesso de suas obras ao seu visual, outras que esquecem a face da mulher e se concentram nas palavras. Enfim, a crítica tem muitos caminhos, vertentes tortuosas que nada mais são que uma tradução do que há de mais humano: o desejo de desvendar a arte, o incômodo. Não vou adentrar neste melindre literário, considero uma obra literária um universo de possibilidades, algo complexo o suficiente para me ater por inteiro. Claro que quis saber quem era a autora, evidente que aquela fotinha na orelha do livro me chamou atenção, mas não o suficiente para me soltar da narrativa. E a ela nos dediquemos.

A intrigante Donna Tartt.

É um desafio aos desavisados. Afasta os incautos apenas pelo volume: 720 páginas em papel pólen soft (OMG! Amo papel pólen!), uma capa misteriosa e um título convidativo. Confesso que iniciei a leitura cheia de medo, pois desconfio dos vencedores recentes do Pulitzer, mas me senti atraída por dois simples fatores: uma capa bonita e o fato de ser uma autora, uma mulher. (Precisamos ler mais mulheres! Sou a favor disso... Depois dedico um post sobre o assunto, pois é algo que ronda meus pensamentos inconstantes.) O enredo é direto e de certa forma simples: a história de um garoto órfão e a crueldade do destino. Mas os labirintos da narrativa e o fato dos acontecimentos serem narrados pelo próprio garoto são elementos que enriquecem a obra. Theodore foi abandonado pelo pai e perde a mãe num atentado terrorista. O único elo entre ele e a memória de sua vida ‘feliz’ com a mãe é uma pintura pequena de um pintassilgo, que o direciona a uma vida cada vez mais conturbada.
Narrar uma história de obsessão por uma obra de arte, que na verdade é uma tentativa desesperada de se agarrar ao passado considerado feliz, é no mínimo deprimente. Theo é o retrato do desespero calado, da dor, e as referências artísticas desnudam o sentido destes sentimentos a cada capítulo da obra. Um mesmo quadro tem perspectivas infinitas. E esta é apenas uma delas. As personagens que tocam o protagonista nunca se mostram por inteiro, considero um sucesso por parte da autora a sua forma de mostrar o pensamento de alguém, um jovem a contar sua própria história: a memória e suas fantasias, seus monstros e desejos. Em alguns momentos pude sentir o gosto amargo da vida de Theo, em outros fiquei obcecada pela obra O pintassilgo, do pintor Carel Fabritius, de 1654. Confesso que a raridade de uma obra agradar tanto ao público quanto à crítica em geral me causou um certo interesse pelo trabalho, e não me decepcionei. Sim, Donna exagera em alguns momentos em seu estilo carregado, excesso de adjetivos, mas em seguida me questionei se este não seria o tom narrativo da personagem: o jovem Theo, desesperado por se agarrar ao passado, tentando a todo momento justificar sua infeliz passagem pela vida. 

O pintassilgo, de Carel Fabritius. 33 x 22cm. 1654.

O pintassilgo é um livro triste. Dito isto mais uma vez, percebo que ele foi competente na sua premissa. Talvez desagrade à crítica literária especializada a pitada de suspense policial que Donna Tartt coloca na obra, e talvez seja esta a fórmula utilizada pela autora para transgredir alguns limites e derrubar os muros entre o que é considerado ‘biscoito fino’ e a leitura para a ‘massa’. Não gosto de desfiar o enredo por inteiro, meu foco nestas resenhas sempre será nas impressões a serem compartilhadas com os leitores. Em suma, ler esta obra me trouxe uma teia complexa de sentidos, visitei os problemas de outrem por vias que nunca considerei como possibilidade. Acredito que vale a leitura, de peito aberto mesmo. Lá dentro encontramos uma visita à arte e aulas de estética absolutamente simples, como deveriam ser, afinal todos nos deparamos com a arte com o mesmo propósito e a educação para a apreciação é uma realidade infelizmente distante. Dito isto, espero ter contribuído com meu simples relato de leitura, pois só chamo de resenha por ter um pouco da obra em mim, e por convidar os leitores do blog a partilharem comigo suas experiências de leitura.
Finalizo com um trecho, pois acredito na experiência como melhor convite:

Mas às vezes, inesperadamente, a dor me atingia em ondas que me deixavam sem ar; e quando as ondas recuavam, eu me via olhando para os destroços repulsivos de um naufrágio, iluminados por uma luz tão lúcida, tão deprimente e tão vazia que eu mal conseguia lembrar que o mundo algum dia chegara a ser algo que não morte. (pág. 88)


O pintassilgo, de Donna Tartt. Companhia das Letras, 721 páginas.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Resenha da Semana: Livro Sexto, de Sophia de Mello Breyner Andresen




O livro que agora me proponho a resenhar, infelizmente, não foi publicado no Brasil. O encontrei em Portugal, porventura de ter recebido o pedido de um amigo para que levasse de presente qualquer obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, acabei comprando uma dezena de livros dela, pelo baixo custo e pela imensa beleza das edições.
Me apaixonei pela poesia de Sophia imediatamente ao ser confrontada por suas palavras sussurradas em Lisboa. Uma poesia sóbria e que leva à imagens bem construídas em um ensejo musical. Cabralina. Forte. 
A autora nasceu em Porto, Portugal em 1919 e faleceu em Lisboa no ano de 2004. Publicou obras poéticas, teatro e traduções de Dante a Shakespeare. O “Livro Sexto” foi a sétima obra da autora, e acabou sendo agraciada com o “Grande Prémio de Poesia”. Dentre as palavras proferidas por Sophia na ocasião do recebimento desta premiação, destaco:

Retrato da autora por Arpad Szenes, 1958

‘Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar, e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.’ (pág. 73)

Lançando perguntas ao mar podemos ter um tempo de meditação e crescimento com estas mesmas dúvidas que retornam nas ondas. A obra de Sophia foi dividida em três partes, e todas elas tem em seu cerne o cheiro misterioso e salgado do mar português. Na primeira parte, intitulada ‘As coisas’, encontra-se poesia, lugares, evocações e história. Melodias e prosa poética de forma suave e bem trabalhada. O rigor estabelecido pela autora demonstra a presença do Clássico em seu discurso:

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido 
[...] (MUSA, pág. 16)

O maior chamado que um poeta pode fazer é perpetuado na voz de Sophia, na serenidade da evocação da Musa. No entanto dor e beleza se emparelham, são frutos de uma mesma nota dessa harmonia:

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta
(MUSA, pág. 17)

Numa leitura personalíssima eu arriscaria me aproximar de Cecília Meireles ao ler os versos de Sophia. A competência estética em temáticas dilacerantes pode ser equiparada em ambas. Em ‘A estrela’, segunda parte da obra, o inefável se torna vigoroso. O poema que dá seu título a esta parte do livro, guia a leitura dos que seguem. (Em alguns momentos desta resenha preciso me conter para não desfiar os versos por inteiro, tamanha a beleza e o convite). O que chamo de cabralino é a herança do ofício de João Cabral de Melo Neto (posteriormente descobri que o autor brasileiro era correspondente da autora), deleite que ecoa nestes versos:

               NO POEMA
Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar a decadência morte e ruína
O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa

(pág. 32)

Pedra lapidada ao longo de um trabalho matemático, bem calculado, beleza em um cerne clássico, atemporal. O desfile de possibilidades bem colocadas no papel, os ecos de vozes que guiaram a elaboração de um trabalho tão delicado/dedicado. 
Na terceira parte, ‘As grades’, Sophia traz o retrato do pranto, da pátria num perfil real cantado em solidez:

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável
[...] 
(PÁTRIA, pág. 57)

Doloridas páginas se prolongam até o encerramento desta obra num posfácio lúcido e grandioso, fruto das palavras proferidas pela própria autora em razão da premiação recebida pelo ‘Livro sexto’. Vou encerrar esta resenha me sentindo incompetente na árdua tarefa de desenhar o que foi a leitura destes poemas, e por fim deixo a mais conhecida e marcante citação desta obra:

                    INSCRIÇÃO
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

(pág. 43)


Livro Sexto, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Caminho Editorial, 80 páginas.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Resenha da Semana: Desonra, de J. M. Coetzee



Reclusão. Esta foi a principal característica de John Maxwell Coetzee (o nome do autor sul africano é pronunciado Kuutse-e) que encontrei ao pesquisar rapidamente sobre sua vida. Aquela ideia de um autor como 'ser estranho', que se reserva ao ostracismo como fonte de criatividade parece real quando se lê a respeito de Coetzee. Nobel de Literatura em 2003, foi premiado muitas vezes pelo seu trabalho incisivo. A obra Desonra, foi premiada com o Booker Prize, o mais importante prêmio literário da Inglaterra. E Desonra foi a que escolhi como leitura por esses dias, foi a que me arrebatou horas em leitura dolorida.


J. M. Coetzee

Há uma paixão madura encenada ao som de clássicos, na presença intermitente de citações entrelaçadas nas imagens de dor. O enredo recorta o infortúnio na vida do professor David Lurie: escândalo, crime e isolamento. Exatamente nesta ordem. 

Desonra é uma ferida dolorosa, aberta, escancara a miséria e a solidão humanas, tão propriamente humanas. A arte afasta a morte, nunca um preceito foi tão palpável. Retorno à célebre Blanche Dubois: 'O oposto da morte é o desejo', numa tentativa de justificar o descompasso do professor Lurie a quem acompanhei durante esta leitura. Cabeça dura, crânio impenetrável para novos conceitos:
"Seu temperamento não vai mudar, está velho demais para isso. Está fixo, estabelecido. O crânio, depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo." (pág.05)

Nesse ritmo percebe-se que a própria ideia de desonra é anacrônica: perder a honra, qual o significado disso nos dias de hoje? Como é possível se perder a honra? A resposta talvez resida na relação problemática do professor Lurie com sua filha que, mergulhada no meio da África, se entrelaça aos acontecimentos julgados pelo pai como absurdos, e que levam o leitor (que vê o mundo através das sensações de David) a enveredar pelo mesmo julgamento. Coetzee conduz uma narrativa que desempenha o percurso desta sensação profunda e incoerente.

O gosto de derrota é marcado em Desonra. A sombra pessimista dos intelectuais evocados na narrativa, a dureza da linguagem empregada, a escolha de um cenário socialmente desafiador aos ideais ocidentais. Coetzee nos faz questionar esta identidade por muitos tida como 'pós-colonial', elitizada: quem somos afinal? O que é ser homem? O que é ser mulher? Que incidentes podem desonrar um homem ou desonrar uma mulher?

A resenha de um livro pede em muitos aspectos um tipo de resumo do enredo. Mas não me permito narrar este trecho da vida de David Lurie. Meu comentário é direto, simples, honesto. Ainda embriagado pelo soco na cara de se ler Coetzee, mas que traz uma essência que é emanada desta obra: a crueldade.

A humanidade tem mecanismos complexos: o animalesco, selvagem em sua luta com o cultural, intelectualizado. Um embate surdo que passa desapercebido a maior parte do tempo. Somos o barulho e Desonra é o silêncio incômodo que evitamos todos os dias.

Desonra, de J. M. Coetzee. Companhia das Letras, 248 páginas.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Resenha da Semana: Cantiga, de Blexbolex



As resenhas pararam um pouco. O tempo é curto diante das exigências econômicas que temos que lidar, e não recebo um centavo por estas parcas palavras que publico. O bom é que exercito um diálogo agradável, sincero e me permito leituras diversas. Hoje trago um livro classificado de forma habitual como infantil, mas que causa um choque estético em nossos olhos tão pouco acostumados com leituras profundamente sensíveis. O livro ‘Cantiga’, do artista francês Blexbolex, (título no original ‘Romance’) foi lançado este ano pela editora Cosac Naify e traz em si uma narrativa que pouco se esforça para separar imagem de palavra. Sou partidária da ideia que as palavras são espelhos nas mãos dos poetas, e assim se faz no título em questão. Em entrevista ao blog da editora Cosac Naify o artista Blexbolex ressalta: 

‘Pelo o que eu me lembro, as palavras, a linguagem são coisas que sempre me interessaram, na mesma medida que as imagens. As palavras são ideias (e ainda, isso não é completamente verdade) quando as dizemos, mais quando as escrevemos; são também imagens, por sua grafia, seu tamanho e eventualmente suas cores. E as imagens também são ideias porque elas evocam, mostram, contam. Sem dúvida, isso que estou dizendo é muito pouco e confuso. É uma coisa complexa. Para mim, as imagens são uma maneira de colocar em jogo todas essas coisas, com o objetivo de me surpreender, e aos outros também, caso queiram se prestar ao jogo pelo qual eu os convido a participar.’



 A riqueza visual, as cores fortes bem como detalhes como a fonte e a lombada do livro tornam o objeto em questão em algo fascinante. Li ‘Cantiga’ com meu filho, que tem 9 anos e já se interessa pelas leituras da moda (heróis jovens envolvidos com mitologia grega repaginada), e mesmo diante das preferências dele o que fizemos foi uma leitura emocionante, visto que ficamos igualmente conectados com a beleza da obra. Ler em voz alta, na sensação do ritmo das palavras e das imagens descortinadas, desenhar e escrever junto ao artista. Blexbolex vem de uma trajetória envolvida em beleza: foi premiado na Feira do Livro de Leipzig, Alemanha, com a distinção de 'Livro mais bonito do mundo', por sua obra L'imagier des gens (Pessoas, 2008). Artista por formação e tipógrafo por profissão, Blexbolex desenvolve a narrativa em 'Cantiga' acrescentando/retirando/modificando elementos capítulo a capítulo. O efeito é um jogo, um desafio prazeroso.

O livro mais bonito do mundo, premiado com esta titulação na Feira do livro de Leipzig.


Há uma certeza semiótica em ‘Cantiga’. A conexão palavrimagem paira numa narrativa única. Não há cisão, não existe imagem nem palavra como textos separados. Para os que se debruçam em estudos estéticos, é uma boa pedida. Aos poetas também. Aos pais que desejam aproximar os filhos de uma consciência estética que vá além de cores metalizadas e personagens fortemente coloridos e sem propósito, o livro ‘Cantiga’ é o caminho. E é um livro lindo. 


Em minha casa ele fica na sala. Bem no meio dela.

Cantiga, de Blexbolex. Cosac Naify, 280 páginas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Resenha da semana: [poemas], de Wislawa Szymborska







"A vida é minha ocasião única", este verso me sequestrou os sentidos. Uma autora polonesa, tão distante, mestra em um idioma desconhecido no meu limitado universo linguístico, e que de repente passa a fazer parte da minha noção de existência. Wislawa é uma senhora reservada, sua vida particular é definitivamente particular. Não há espaço para especulações. Talvez ela mesma dissesse de forma sofisticada e bem humorada que as pessoas não se interessam na vida de um poeta. Acontece que mesmo assim, quieta em seu canto (Cracóvia), beirando 90 anos, ela foi agraciada com o Nobel de Literatura em 1996. Mas só em 2011 o brasileiro se depara com parte da sua obra traduzida para o português e publicada em edição bilíngue.
 

A experiência da poesia é inesgotável. Um soco dentro d'água poderia definir o caminho da leitura de Szymborska. Não posso fazer uma resenha de um livro falando de uma totalidade nele. Deixe-me explicar: se trata de um livro de poesias, cada poema é um universo em sua complexa composição, em sua intenção linguística, nos sons e cores designados para desempenhar papeis diversos em harmonia irrefreada. No entanto necessito falar desta reunião competente de poemas, um trabalho que permite ao leitor brasileiro vivenciar o filosófico estilo da poeta. A profundidade dos questionamentos elencados por Wislawa é suavizada pela linguagem simples e direta.
 

A pensar nas palavras e suas possibilidades de organização no mundo, ler os poemas de Szymborska traz um choque quando se percebe que com um simples modo de falar é possível se sentir arrebatado por questões febris do ser e estar no mundo. A vida, a arte, a ciência... tudo se torna um mote desenhado habilmente:

Bato à porta da pedra.
- Sou eu, me deixa entrar.
Venho por curiosidade pura.
A vida é minha ocasião única.
Pretendo percorrer teu palácio
e depois visitar ainda a folha e a gota d'água.
Pouco tempo tenho para isso tudo.
Minha mortalidade devia te comover.

 (Conversa com a pedra/ Rozmowa z kamieniem, pág. 33)

Perceber-se como autora, poeta, num humor sombrio e sofisticado: este é o perceptível perfil da autora. Szymborska desenha a imagem do artista como um ser solitário, se expõe neste contexto, abriga toda uma geração de autores abandonados:

Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir.
Nos recusaste a multidão ululante.
Uma dúzia de pessoas na sala,
Já é hora de começar a fala.
Metade veio porque está chovendo,
o resto é parente. Ó Musa.

(Recital da autora/Wieczór autorski, pág. 32)

A desesperança do entre guerras é temática presente na vivência artística deste e do último século. Para Szymborska talvez uma linguagem hermética fosse desrespeitar a vivência de dor e reconstrução em sua nação. Daí a sintética lógica desenhada pelo seu estilo, que pode ser seguida por quem quer que a leia, no entanto não se pode confundir uma linguagem direta com uma poesia fácil. Há uma economia própria da poesia, uma lapidação segura e que remete a um labor árduo, meditado por muito tempo.

As três palavras mais estranhas

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.

(Trzy slowa najdziwniejsze, pág. 107)

A obra foi organizada cronologicamente por poemas escritos entre 1957 e 2002. Vale ressaltar o sensível e consciente trabalho de tradução feito por Regina Przybycien, doutora em Literatura comparada pela UFMG, tradutora de literatura inglesa e polonesa e pesquisadora na área de gênero e poesia. A apresentação da obra feita pela tradutora é um bônus de boa leitura: leve, consciente, bem trabalhada e por vezes poética. A tradução é vista enfim como uma co-autoria: "Toda tradução é uma tentativa de recriação em outra língua, com outros sons e outros recursos poéticos, do sentido original." Não entendo a língua polonesa, mas suspeito que, diante da magnitude dos poemas encontrados nesta obra, a tradutora tenha trazido ao público a atmosfera de Wislawa Szymborska. Recomendo a quem queira aprender a ler poesia, pois acredito que a leitura de poesia é uma construção constante. Szymborska segura as mãos de seu leitor, ou aperta levemente a sua garganta em comoção precisa.

[poemas], de Wislawa Szymborska. Companhia das Letras, 165 páginas.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Resenha da semana: 'Reparação', de Ian McEwan




http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=11466


Em poucas palavras diria que Ian McEwan é um dos grandes nomes da literatura na atualidade. Mas não tenho cacife para tal afirmação e por esta razão prefiro comentar uma obra que me arrebatou por inteiro: "Reparação" (Atonement). Publicado em 2001, a obra gira em torno da vida da família britânica Tallis, em especial da jovem Briony Tallis. Em termos mais precisos é possível declarar que não há um perfil que caiba a complexidade desta personagem: Ian ata a leitura à experiência desta criatura tão atormentada pelas próprias paixões e sentimentos. A vida é a literatura. Caminho sem volta. Verdade sem pudor.

A obra começa a atar nós com a seguinte cena: a menina observa a irmã mergulhar na fonte do jardim vestida apenas de roupas íntimas, diante dos olhos do amigo de infância, e daí deleita-se em suposições atravessadas por sentimentos paradoxais. Perdida numa tormenta de ciúmes e pudor, Briony imagina contextos que sempre desembocam em uma situação aterradora. A narrativa permite que andemos de cômodo em cômodo da casa, de personagem a personagem, mas sempre na baliza da menina que produz circunstâncias que, em uma primeira instância, parecem complexas demais para a pouca idade da garota.

Ambicionando ser escritora, nada mais justo que alimentar-se de narrativas, preenchendo lacunas que soçobram nos longos dias monótonos que a vida oferece. Briony desmonta a ideia de paz dentro da família, em específico no episódio do jantar de chegada de seu irmão. Acaba por cometer um crime que repercute na linha da vida da família, e literalmente revive este remorso por muito tempo. O irreversível se apresenta aí: de uma acusação, uma palavra dita e repetida, Briony assume o papel do editor, mas a história editada é real, não mais seus sonhos e escritos infantis.

A linguagem de Ian (poderíamos dizer a linguagem de Briony) é feita de recortes em capítulos que levam de um a outro personagem, é possível perceber os muitos equívocos de Briony evidenciados nas vivências elencadas a partir das sensações. As descrições são precisas, denotam uma contextualidade remota, tons vitorianos são pincelados durante a leitura. Não há leveza neste romance, o ar sufocante, quente, a densidade do crime, o arrependimento de uma vida inteira... Tudo pesa capítulo a capítulo.

Em muitos aspectos o texto de Ian revela um tom metalinguístico, daí a ideia do escritor como Briony: capaz de crimes em nome da narrativa perfeita, afetado pelas estações, pela lua, pelos mais superficiais sentimentos e desejos. Um ser mítico e patético, talvez doentio diante da normalidade tediosa da vida. 

A obra foi traduzida para a linguagem do cinema em 2007, por Joe Wright, que soube preservar o ar pesado do romance em um filme de fotografia luminosa e atuações carregadas. Recomendo fortemente o filme após a leitura da obra. A tradução para o cinema obviamente perde alguns aspectos encontrados apenas na escrita, mas como se trata de uma tradução, este processo de perda é minimamente esperado. O confronto das duas linguagens traz uma riqueza de construções de imagens e perfis narrativos da obra.




A guerra se torna um cenário pequeno diante da tragédia nela encenada. Londres é retratada com beleza e dor, complemento perfeito para a história do romance. O leitor conduz as imagens como deseja, pois o grau de aceitação da situação ali exposta é variável. A moralidade de como se vê as atitudes de Briony e as consequências destes atos vai depender unicamente do leitor. Ler 'Reparação' é um convite ao conhecimento de si.
Reparação, de Ian McEwan. Companhia das Letras, 371 páginas.

domingo, 27 de julho de 2014

Resenha da semana: 'Suicídios exemplares', de Enrique Vila-Matas



Por qual razão suicídios poderiam ser considerados exemplares? Talvez esta intrigante pergunta leve um curioso leitor a abrir o livro do premiado escritor espanhol Enrique Vila-Matas. Os onze contos e uma citação que compõem o livro traduzem esta pergunta numa linguagem atrevida, aprofundada numa perspectiva distinta acerca da morte. No hall das obras que abordam o tema, Suicídios exemplares estaria numa categoria que evoca muito mais a meditação sobre a vida que realmente uma realização do ato em si.

O suicídio é uma desculpa.

Entre o humor incisivo e o drama de viver, as personagens de Vila-Matas são compostas como heróis que vivem o dilema em todas as suas perspectivas: formas de morrer, fugas, medos, desejos e valores em choque. Nada escapa à palavra. Na mesma seara que trata de um amor perfeito, exemplar, que não sofreu a ação do tempo, não teve a chance de acabar, os suicídios são descritos, exaustivamente tratados, vertiginosamente trazidos à baila de uma trajetória imprevisível.
A bem dizer exemplo desta visão da obra, o conto “O colecionador de tempestades” traz o personagem Mestre que (felizmente?) morre de um ataque do coração minutos antes de conseguir atingir seu objetivo: um suicídio que envolvia luzes e partículas elétricas, numa cripta escolhida precisamente para o ato. A incapacidade desta personagem ilumina a incapacidade das outras que não conseguem, por muitas razões distintas e curiosas, atingir o grand finale, todas residem na possibilidade torturante.
Diria que a palavra ‘ironia’ descreve bem a linguagem do texto de Enrique, mas talvez ‘paixão’ seja a tradução do sofrimento implícito no desejo perene de desaparecer, um desejo comum às personagens expostas nos contos. Uma perturbação física, angustiante, ao mesmo tempo impossível por razões múltiplas escondidas nos detalhes deste trabalho. 
O convite feito por Vila-Matas surge desde o título, ficamos presos à narrativa como espectadores que não sabem se torcem pela realização do suicídio, ou pela desistência da ação dolorosa a que querem se submeter estes melancólicos heróis. O estilo intertextual, recheado de citações e presenças como Herman Melville, Walter Benjamim e Sêneca, arrasta para uma leitura febril e raivosa, uma estranha obsessão que permite ao leitor se questionar sobre o tabu do suicídio.
Enrique Vila-Matas não pede permissão, o desejo de morrer é presença constante, intensa, profunda. O que se percebe nas muitas narrativas é o incômodo da vida, a ironia de querer e não conseguir, a raiva em ser incapaz de tornar real uma vontade que incomoda: os dois únicos que chegam perto da morte pelas próprias mãos são circundados por uma narrativa nublada, não há a certeza da realização. Chegamos a questionar se o desejo de morrer é realmente algo fora da normalidade.


Hart Crane, Virginia Woolf, Cesare Pavese, Romain Gary, Ernest Hemingway, Jack London, Sylvia Plath, Henri de Montherlant, John Berryman, Wiliam Inge, Paul Celan, Tadeusz Borowski, Anne Sexton, Serguei Esenin, Vladimir Mayakovsky, Stefan Zweig, Primo Levi, Paul Nizan, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Mário de Sá Carneiro, Luís de Montalvor, Manuel Laranjeira, Trindade Coelho, Florbela Espanca: todos remediaram suas existências com um sinistro ato máximo. Enrique Vila-Matas preferiu escrever.

Ler esta obra é, no mínimo, um delicioso incômodo.

Suicídios exemplares, de Enrique Vila-Matas. Editora Cosac Naify, 205 páginas.



sexta-feira, 25 de julho de 2014

Resenha da semana: 'Nas tuas mãos', de Inês Pedrosa



Inês Pedrosa foi uma dessas autoras que surgiu em minha vida ao delicioso acaso da busca na livraria. Percorrer despretensiosamente prateleiras com um olhar atencioso, acreditando que vou encontrar alguma leitura que me surpreenda, algo que me arrebate as horas de leitura num átimo de tempo, num segundo denso. Foi assim. Encontrei a obra Nas tuas mãos.  A atual diretora da Casa Fernando Pessoa é uma jornalista que pode ser facilmente encontrada no Twitter, e que conquista em seus romances pelo ar melancólico e as palavras macias. Nascida em Portugal em 1962, atuou nos principais jornais de seu país natal. O romance aqui resenhado foi laureado com o Prêmio Máxima.
Em Nas tuas mãos, encontrei três gerações de mulheres descrevendo/escrevendo suas vidas, suas faltas, seus desejos e desesperos. A linguagem é inteligente, leve, e o delinear das personagens é feito diante das experiências de cada uma. A primeira parte, O diário de Jenny, reverbera a tristeza da geração mais antiga da família, as lacunas do discurso evidenciam segredos. Sendo Jenny o sujeito desta parte do romance, é compreensível (eu diria até que é de dedução fácil) que se veja a complexidade de apenas um lado da história. O tom de exposição e confissão, a dor na sua mais viva exibição: o diário, as palavras em primeira pessoa, memórias e incursão no universo da invenção e das alegorias. As páginas de um diário são as sensações quase que no calor dos acontecimentos. Em um olhar pessoal, foi o momento de grande prazer de minha leitura. Há ali uma entrega romântica, apoiada em um sofrimento que veste bem o perfil da narrativa e se comunica profundamente com as narrativas posteriores. Abrir a leitura com o íntimo de um diário foi, de longe, um laço no leitor que escolhe esta obra para desvendar.
A segunda parte chega com dureza, fotografias que se sobrepõem a ensaios feitos pela personagem deste álbum: uma espécie de antologia de capturas dos momentos da árvore que compõe a vida da narradora desta parte. Em O álbum de Camila há o instante e a narrativa. Mais uma vez há a exposição da dor, que perde seu tom melancólico do capítulo anterior para ganhar uma cor mais forte, como um acordar após real pesadelo. As experiências ganham uma descrição minuciosa, bem como um patamar intertextual evidenciado.
Intitulada As cartas de Natália, a terceira parte se comunica diretamente com a primeira e fecha as pontas das histórias cruzadas deste romance. Inês Pedrosa escolhe palavras como quem desfia um tecido leve, ao mesmo tempo que maltrata a carne na escolha de um enredo que toca no cerne da memória. Três gerações de mulheres: perpetuação de segredos, pactos. Um universo complexo e silencioso, que observa de dentro de baús e em antigos porta-retratos. 
A leitura deste romance é fácil, não desafia esteticamente, mesmo tendo uma mudança significativa da forma como é escrito de capítulo a capítulo. O que captura o leitor é a melancolia que aparentemente nasceu com a escrita em português, o time contemporâneo de escritores portugueses, quando elencado pela crítica em geral, cita nomes conhecidos por serem melancólicos e/ou pessimistas. O enredo de Nas tuas mãos é a porta convidativa, a intrigante mão que segura a atenção (tensão) do leitor. Ler este romance causa dor.