quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Resenha da semana: [poemas], de Wislawa Szymborska







"A vida é minha ocasião única", este verso me sequestrou os sentidos. Uma autora polonesa, tão distante, mestra em um idioma desconhecido no meu limitado universo linguístico, e que de repente passa a fazer parte da minha noção de existência. Wislawa é uma senhora reservada, sua vida particular é definitivamente particular. Não há espaço para especulações. Talvez ela mesma dissesse de forma sofisticada e bem humorada que as pessoas não se interessam na vida de um poeta. Acontece que mesmo assim, quieta em seu canto (Cracóvia), beirando 90 anos, ela foi agraciada com o Nobel de Literatura em 1996. Mas só em 2011 o brasileiro se depara com parte da sua obra traduzida para o português e publicada em edição bilíngue.
 

A experiência da poesia é inesgotável. Um soco dentro d'água poderia definir o caminho da leitura de Szymborska. Não posso fazer uma resenha de um livro falando de uma totalidade nele. Deixe-me explicar: se trata de um livro de poesias, cada poema é um universo em sua complexa composição, em sua intenção linguística, nos sons e cores designados para desempenhar papeis diversos em harmonia irrefreada. No entanto necessito falar desta reunião competente de poemas, um trabalho que permite ao leitor brasileiro vivenciar o filosófico estilo da poeta. A profundidade dos questionamentos elencados por Wislawa é suavizada pela linguagem simples e direta.
 

A pensar nas palavras e suas possibilidades de organização no mundo, ler os poemas de Szymborska traz um choque quando se percebe que com um simples modo de falar é possível se sentir arrebatado por questões febris do ser e estar no mundo. A vida, a arte, a ciência... tudo se torna um mote desenhado habilmente:

Bato à porta da pedra.
- Sou eu, me deixa entrar.
Venho por curiosidade pura.
A vida é minha ocasião única.
Pretendo percorrer teu palácio
e depois visitar ainda a folha e a gota d'água.
Pouco tempo tenho para isso tudo.
Minha mortalidade devia te comover.

 (Conversa com a pedra/ Rozmowa z kamieniem, pág. 33)

Perceber-se como autora, poeta, num humor sombrio e sofisticado: este é o perceptível perfil da autora. Szymborska desenha a imagem do artista como um ser solitário, se expõe neste contexto, abriga toda uma geração de autores abandonados:

Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir.
Nos recusaste a multidão ululante.
Uma dúzia de pessoas na sala,
Já é hora de começar a fala.
Metade veio porque está chovendo,
o resto é parente. Ó Musa.

(Recital da autora/Wieczór autorski, pág. 32)

A desesperança do entre guerras é temática presente na vivência artística deste e do último século. Para Szymborska talvez uma linguagem hermética fosse desrespeitar a vivência de dor e reconstrução em sua nação. Daí a sintética lógica desenhada pelo seu estilo, que pode ser seguida por quem quer que a leia, no entanto não se pode confundir uma linguagem direta com uma poesia fácil. Há uma economia própria da poesia, uma lapidação segura e que remete a um labor árduo, meditado por muito tempo.

As três palavras mais estranhas

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.

(Trzy slowa najdziwniejsze, pág. 107)

A obra foi organizada cronologicamente por poemas escritos entre 1957 e 2002. Vale ressaltar o sensível e consciente trabalho de tradução feito por Regina Przybycien, doutora em Literatura comparada pela UFMG, tradutora de literatura inglesa e polonesa e pesquisadora na área de gênero e poesia. A apresentação da obra feita pela tradutora é um bônus de boa leitura: leve, consciente, bem trabalhada e por vezes poética. A tradução é vista enfim como uma co-autoria: "Toda tradução é uma tentativa de recriação em outra língua, com outros sons e outros recursos poéticos, do sentido original." Não entendo a língua polonesa, mas suspeito que, diante da magnitude dos poemas encontrados nesta obra, a tradutora tenha trazido ao público a atmosfera de Wislawa Szymborska. Recomendo a quem queira aprender a ler poesia, pois acredito que a leitura de poesia é uma construção constante. Szymborska segura as mãos de seu leitor, ou aperta levemente a sua garganta em comoção precisa.

[poemas], de Wislawa Szymborska. Companhia das Letras, 165 páginas.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Resenha da semana: 'Reparação', de Ian McEwan




http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=11466


Em poucas palavras diria que Ian McEwan é um dos grandes nomes da literatura na atualidade. Mas não tenho cacife para tal afirmação e por esta razão prefiro comentar uma obra que me arrebatou por inteiro: "Reparação" (Atonement). Publicado em 2001, a obra gira em torno da vida da família britânica Tallis, em especial da jovem Briony Tallis. Em termos mais precisos é possível declarar que não há um perfil que caiba a complexidade desta personagem: Ian ata a leitura à experiência desta criatura tão atormentada pelas próprias paixões e sentimentos. A vida é a literatura. Caminho sem volta. Verdade sem pudor.

A obra começa a atar nós com a seguinte cena: a menina observa a irmã mergulhar na fonte do jardim vestida apenas de roupas íntimas, diante dos olhos do amigo de infância, e daí deleita-se em suposições atravessadas por sentimentos paradoxais. Perdida numa tormenta de ciúmes e pudor, Briony imagina contextos que sempre desembocam em uma situação aterradora. A narrativa permite que andemos de cômodo em cômodo da casa, de personagem a personagem, mas sempre na baliza da menina que produz circunstâncias que, em uma primeira instância, parecem complexas demais para a pouca idade da garota.

Ambicionando ser escritora, nada mais justo que alimentar-se de narrativas, preenchendo lacunas que soçobram nos longos dias monótonos que a vida oferece. Briony desmonta a ideia de paz dentro da família, em específico no episódio do jantar de chegada de seu irmão. Acaba por cometer um crime que repercute na linha da vida da família, e literalmente revive este remorso por muito tempo. O irreversível se apresenta aí: de uma acusação, uma palavra dita e repetida, Briony assume o papel do editor, mas a história editada é real, não mais seus sonhos e escritos infantis.

A linguagem de Ian (poderíamos dizer a linguagem de Briony) é feita de recortes em capítulos que levam de um a outro personagem, é possível perceber os muitos equívocos de Briony evidenciados nas vivências elencadas a partir das sensações. As descrições são precisas, denotam uma contextualidade remota, tons vitorianos são pincelados durante a leitura. Não há leveza neste romance, o ar sufocante, quente, a densidade do crime, o arrependimento de uma vida inteira... Tudo pesa capítulo a capítulo.

Em muitos aspectos o texto de Ian revela um tom metalinguístico, daí a ideia do escritor como Briony: capaz de crimes em nome da narrativa perfeita, afetado pelas estações, pela lua, pelos mais superficiais sentimentos e desejos. Um ser mítico e patético, talvez doentio diante da normalidade tediosa da vida. 

A obra foi traduzida para a linguagem do cinema em 2007, por Joe Wright, que soube preservar o ar pesado do romance em um filme de fotografia luminosa e atuações carregadas. Recomendo fortemente o filme após a leitura da obra. A tradução para o cinema obviamente perde alguns aspectos encontrados apenas na escrita, mas como se trata de uma tradução, este processo de perda é minimamente esperado. O confronto das duas linguagens traz uma riqueza de construções de imagens e perfis narrativos da obra.




A guerra se torna um cenário pequeno diante da tragédia nela encenada. Londres é retratada com beleza e dor, complemento perfeito para a história do romance. O leitor conduz as imagens como deseja, pois o grau de aceitação da situação ali exposta é variável. A moralidade de como se vê as atitudes de Briony e as consequências destes atos vai depender unicamente do leitor. Ler 'Reparação' é um convite ao conhecimento de si.
Reparação, de Ian McEwan. Companhia das Letras, 371 páginas.