quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Resenha da semana: 'Reparação', de Ian McEwan




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Em poucas palavras diria que Ian McEwan é um dos grandes nomes da literatura na atualidade. Mas não tenho cacife para tal afirmação e por esta razão prefiro comentar uma obra que me arrebatou por inteiro: "Reparação" (Atonement). Publicado em 2001, a obra gira em torno da vida da família britânica Tallis, em especial da jovem Briony Tallis. Em termos mais precisos é possível declarar que não há um perfil que caiba a complexidade desta personagem: Ian ata a leitura à experiência desta criatura tão atormentada pelas próprias paixões e sentimentos. A vida é a literatura. Caminho sem volta. Verdade sem pudor.

A obra começa a atar nós com a seguinte cena: a menina observa a irmã mergulhar na fonte do jardim vestida apenas de roupas íntimas, diante dos olhos do amigo de infância, e daí deleita-se em suposições atravessadas por sentimentos paradoxais. Perdida numa tormenta de ciúmes e pudor, Briony imagina contextos que sempre desembocam em uma situação aterradora. A narrativa permite que andemos de cômodo em cômodo da casa, de personagem a personagem, mas sempre na baliza da menina que produz circunstâncias que, em uma primeira instância, parecem complexas demais para a pouca idade da garota.

Ambicionando ser escritora, nada mais justo que alimentar-se de narrativas, preenchendo lacunas que soçobram nos longos dias monótonos que a vida oferece. Briony desmonta a ideia de paz dentro da família, em específico no episódio do jantar de chegada de seu irmão. Acaba por cometer um crime que repercute na linha da vida da família, e literalmente revive este remorso por muito tempo. O irreversível se apresenta aí: de uma acusação, uma palavra dita e repetida, Briony assume o papel do editor, mas a história editada é real, não mais seus sonhos e escritos infantis.

A linguagem de Ian (poderíamos dizer a linguagem de Briony) é feita de recortes em capítulos que levam de um a outro personagem, é possível perceber os muitos equívocos de Briony evidenciados nas vivências elencadas a partir das sensações. As descrições são precisas, denotam uma contextualidade remota, tons vitorianos são pincelados durante a leitura. Não há leveza neste romance, o ar sufocante, quente, a densidade do crime, o arrependimento de uma vida inteira... Tudo pesa capítulo a capítulo.

Em muitos aspectos o texto de Ian revela um tom metalinguístico, daí a ideia do escritor como Briony: capaz de crimes em nome da narrativa perfeita, afetado pelas estações, pela lua, pelos mais superficiais sentimentos e desejos. Um ser mítico e patético, talvez doentio diante da normalidade tediosa da vida. 

A obra foi traduzida para a linguagem do cinema em 2007, por Joe Wright, que soube preservar o ar pesado do romance em um filme de fotografia luminosa e atuações carregadas. Recomendo fortemente o filme após a leitura da obra. A tradução para o cinema obviamente perde alguns aspectos encontrados apenas na escrita, mas como se trata de uma tradução, este processo de perda é minimamente esperado. O confronto das duas linguagens traz uma riqueza de construções de imagens e perfis narrativos da obra.




A guerra se torna um cenário pequeno diante da tragédia nela encenada. Londres é retratada com beleza e dor, complemento perfeito para a história do romance. O leitor conduz as imagens como deseja, pois o grau de aceitação da situação ali exposta é variável. A moralidade de como se vê as atitudes de Briony e as consequências destes atos vai depender unicamente do leitor. Ler 'Reparação' é um convite ao conhecimento de si.
Reparação, de Ian McEwan. Companhia das Letras, 371 páginas.

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