Em poucas palavras diria
que Ian McEwan é um dos grandes nomes da literatura na atualidade. Mas não tenho cacife para tal afirmação e por esta razão prefiro
comentar uma obra que me arrebatou por inteiro: "Reparação" (Atonement). Publicado em 2001, a obra
gira em torno da vida da família britânica Tallis, em especial da jovem Briony
Tallis. Em termos mais precisos é possível declarar que não há um perfil que
caiba a complexidade desta personagem: Ian ata a leitura à experiência desta
criatura tão atormentada pelas próprias paixões e sentimentos. A vida é a
literatura. Caminho sem volta. Verdade sem pudor.
A obra começa a atar nós com a seguinte cena: a menina observa a irmã
mergulhar na fonte do jardim vestida apenas de roupas íntimas, diante dos olhos
do amigo de infância, e daí deleita-se em suposições atravessadas por
sentimentos paradoxais. Perdida numa tormenta de ciúmes e pudor, Briony imagina contextos que sempre desembocam em uma situação aterradora. A narrativa
permite que andemos de cômodo em cômodo da casa, de personagem a personagem,
mas sempre na baliza da menina que produz circunstâncias que, em uma primeira
instância, parecem complexas demais para a pouca idade da garota.
Ambicionando ser escritora,
nada mais justo que alimentar-se de narrativas, preenchendo lacunas que
soçobram nos longos dias monótonos que a vida oferece. Briony desmonta a ideia
de paz dentro da família, em específico no episódio do jantar de chegada de seu
irmão. Acaba por cometer um crime que repercute na linha da vida da família, e
literalmente revive este remorso por muito tempo. O irreversível se apresenta
aí: de uma acusação, uma palavra dita e repetida, Briony assume o papel do
editor, mas a história editada é real, não mais seus sonhos e escritos
infantis.
A linguagem de Ian
(poderíamos dizer a linguagem de Briony) é feita de recortes em capítulos que
levam de um a outro personagem, é possível perceber os muitos equívocos de
Briony evidenciados nas vivências elencadas a partir das sensações. As
descrições são precisas, denotam uma contextualidade remota, tons vitorianos
são pincelados durante a leitura. Não há leveza neste romance, o ar sufocante,
quente, a densidade do crime, o arrependimento de uma vida inteira... Tudo pesa
capítulo a capítulo.
Em muitos aspectos o texto
de Ian revela um tom metalinguístico, daí a ideia do escritor como Briony:
capaz de crimes em nome da narrativa perfeita, afetado pelas estações, pela
lua, pelos mais superficiais sentimentos e desejos. Um ser mítico e patético,
talvez doentio diante da normalidade tediosa da vida.
A obra foi traduzida para
a linguagem do cinema em 2007, por Joe Wright, que soube preservar o ar pesado
do romance em um filme de fotografia luminosa e atuações carregadas. Recomendo
fortemente o filme após a leitura da obra. A tradução para o cinema obviamente
perde alguns aspectos encontrados apenas na escrita, mas como se trata de uma
tradução, este processo de perda é minimamente esperado. O confronto das duas linguagens traz uma riqueza de construções de imagens e perfis narrativos da obra.
A guerra se torna um
cenário pequeno diante da tragédia nela encenada. Londres é retratada com
beleza e dor, complemento perfeito para a história do romance. O leitor conduz
as imagens como deseja, pois o grau de aceitação da situação ali exposta é
variável. A moralidade de como se vê as atitudes de Briony e as consequências
destes atos vai depender unicamente do leitor. Ler 'Reparação' é um convite ao
conhecimento de si.
Reparação, de Ian McEwan. Companhia das Letras, 371 páginas.
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