terça-feira, 18 de novembro de 2014

Resenha da Semana: Desonra, de J. M. Coetzee



Reclusão. Esta foi a principal característica de John Maxwell Coetzee (o nome do autor sul africano é pronunciado Kuutse-e) que encontrei ao pesquisar rapidamente sobre sua vida. Aquela ideia de um autor como 'ser estranho', que se reserva ao ostracismo como fonte de criatividade parece real quando se lê a respeito de Coetzee. Nobel de Literatura em 2003, foi premiado muitas vezes pelo seu trabalho incisivo. A obra Desonra, foi premiada com o Booker Prize, o mais importante prêmio literário da Inglaterra. E Desonra foi a que escolhi como leitura por esses dias, foi a que me arrebatou horas em leitura dolorida.


J. M. Coetzee

Há uma paixão madura encenada ao som de clássicos, na presença intermitente de citações entrelaçadas nas imagens de dor. O enredo recorta o infortúnio na vida do professor David Lurie: escândalo, crime e isolamento. Exatamente nesta ordem. 

Desonra é uma ferida dolorosa, aberta, escancara a miséria e a solidão humanas, tão propriamente humanas. A arte afasta a morte, nunca um preceito foi tão palpável. Retorno à célebre Blanche Dubois: 'O oposto da morte é o desejo', numa tentativa de justificar o descompasso do professor Lurie a quem acompanhei durante esta leitura. Cabeça dura, crânio impenetrável para novos conceitos:
"Seu temperamento não vai mudar, está velho demais para isso. Está fixo, estabelecido. O crânio, depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo." (pág.05)

Nesse ritmo percebe-se que a própria ideia de desonra é anacrônica: perder a honra, qual o significado disso nos dias de hoje? Como é possível se perder a honra? A resposta talvez resida na relação problemática do professor Lurie com sua filha que, mergulhada no meio da África, se entrelaça aos acontecimentos julgados pelo pai como absurdos, e que levam o leitor (que vê o mundo através das sensações de David) a enveredar pelo mesmo julgamento. Coetzee conduz uma narrativa que desempenha o percurso desta sensação profunda e incoerente.

O gosto de derrota é marcado em Desonra. A sombra pessimista dos intelectuais evocados na narrativa, a dureza da linguagem empregada, a escolha de um cenário socialmente desafiador aos ideais ocidentais. Coetzee nos faz questionar esta identidade por muitos tida como 'pós-colonial', elitizada: quem somos afinal? O que é ser homem? O que é ser mulher? Que incidentes podem desonrar um homem ou desonrar uma mulher?

A resenha de um livro pede em muitos aspectos um tipo de resumo do enredo. Mas não me permito narrar este trecho da vida de David Lurie. Meu comentário é direto, simples, honesto. Ainda embriagado pelo soco na cara de se ler Coetzee, mas que traz uma essência que é emanada desta obra: a crueldade.

A humanidade tem mecanismos complexos: o animalesco, selvagem em sua luta com o cultural, intelectualizado. Um embate surdo que passa desapercebido a maior parte do tempo. Somos o barulho e Desonra é o silêncio incômodo que evitamos todos os dias.

Desonra, de J. M. Coetzee. Companhia das Letras, 248 páginas.