domingo, 27 de julho de 2014

Resenha da semana: 'Suicídios exemplares', de Enrique Vila-Matas



Por qual razão suicídios poderiam ser considerados exemplares? Talvez esta intrigante pergunta leve um curioso leitor a abrir o livro do premiado escritor espanhol Enrique Vila-Matas. Os onze contos e uma citação que compõem o livro traduzem esta pergunta numa linguagem atrevida, aprofundada numa perspectiva distinta acerca da morte. No hall das obras que abordam o tema, Suicídios exemplares estaria numa categoria que evoca muito mais a meditação sobre a vida que realmente uma realização do ato em si.

O suicídio é uma desculpa.

Entre o humor incisivo e o drama de viver, as personagens de Vila-Matas são compostas como heróis que vivem o dilema em todas as suas perspectivas: formas de morrer, fugas, medos, desejos e valores em choque. Nada escapa à palavra. Na mesma seara que trata de um amor perfeito, exemplar, que não sofreu a ação do tempo, não teve a chance de acabar, os suicídios são descritos, exaustivamente tratados, vertiginosamente trazidos à baila de uma trajetória imprevisível.
A bem dizer exemplo desta visão da obra, o conto “O colecionador de tempestades” traz o personagem Mestre que (felizmente?) morre de um ataque do coração minutos antes de conseguir atingir seu objetivo: um suicídio que envolvia luzes e partículas elétricas, numa cripta escolhida precisamente para o ato. A incapacidade desta personagem ilumina a incapacidade das outras que não conseguem, por muitas razões distintas e curiosas, atingir o grand finale, todas residem na possibilidade torturante.
Diria que a palavra ‘ironia’ descreve bem a linguagem do texto de Enrique, mas talvez ‘paixão’ seja a tradução do sofrimento implícito no desejo perene de desaparecer, um desejo comum às personagens expostas nos contos. Uma perturbação física, angustiante, ao mesmo tempo impossível por razões múltiplas escondidas nos detalhes deste trabalho. 
O convite feito por Vila-Matas surge desde o título, ficamos presos à narrativa como espectadores que não sabem se torcem pela realização do suicídio, ou pela desistência da ação dolorosa a que querem se submeter estes melancólicos heróis. O estilo intertextual, recheado de citações e presenças como Herman Melville, Walter Benjamim e Sêneca, arrasta para uma leitura febril e raivosa, uma estranha obsessão que permite ao leitor se questionar sobre o tabu do suicídio.
Enrique Vila-Matas não pede permissão, o desejo de morrer é presença constante, intensa, profunda. O que se percebe nas muitas narrativas é o incômodo da vida, a ironia de querer e não conseguir, a raiva em ser incapaz de tornar real uma vontade que incomoda: os dois únicos que chegam perto da morte pelas próprias mãos são circundados por uma narrativa nublada, não há a certeza da realização. Chegamos a questionar se o desejo de morrer é realmente algo fora da normalidade.


Hart Crane, Virginia Woolf, Cesare Pavese, Romain Gary, Ernest Hemingway, Jack London, Sylvia Plath, Henri de Montherlant, John Berryman, Wiliam Inge, Paul Celan, Tadeusz Borowski, Anne Sexton, Serguei Esenin, Vladimir Mayakovsky, Stefan Zweig, Primo Levi, Paul Nizan, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Mário de Sá Carneiro, Luís de Montalvor, Manuel Laranjeira, Trindade Coelho, Florbela Espanca: todos remediaram suas existências com um sinistro ato máximo. Enrique Vila-Matas preferiu escrever.

Ler esta obra é, no mínimo, um delicioso incômodo.

Suicídios exemplares, de Enrique Vila-Matas. Editora Cosac Naify, 205 páginas.



Um comentário:

  1. Pareceu-me interessantíssimo. A resenha me deu vontade de ler. Vou procurar!

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