sábado, 3 de janeiro de 2015

Resenha da Semana: Livro Sexto, de Sophia de Mello Breyner Andresen




O livro que agora me proponho a resenhar, infelizmente, não foi publicado no Brasil. O encontrei em Portugal, porventura de ter recebido o pedido de um amigo para que levasse de presente qualquer obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, acabei comprando uma dezena de livros dela, pelo baixo custo e pela imensa beleza das edições.
Me apaixonei pela poesia de Sophia imediatamente ao ser confrontada por suas palavras sussurradas em Lisboa. Uma poesia sóbria e que leva à imagens bem construídas em um ensejo musical. Cabralina. Forte. 
A autora nasceu em Porto, Portugal em 1919 e faleceu em Lisboa no ano de 2004. Publicou obras poéticas, teatro e traduções de Dante a Shakespeare. O “Livro Sexto” foi a sétima obra da autora, e acabou sendo agraciada com o “Grande Prémio de Poesia”. Dentre as palavras proferidas por Sophia na ocasião do recebimento desta premiação, destaco:

Retrato da autora por Arpad Szenes, 1958

‘Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar, e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.’ (pág. 73)

Lançando perguntas ao mar podemos ter um tempo de meditação e crescimento com estas mesmas dúvidas que retornam nas ondas. A obra de Sophia foi dividida em três partes, e todas elas tem em seu cerne o cheiro misterioso e salgado do mar português. Na primeira parte, intitulada ‘As coisas’, encontra-se poesia, lugares, evocações e história. Melodias e prosa poética de forma suave e bem trabalhada. O rigor estabelecido pela autora demonstra a presença do Clássico em seu discurso:

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido 
[...] (MUSA, pág. 16)

O maior chamado que um poeta pode fazer é perpetuado na voz de Sophia, na serenidade da evocação da Musa. No entanto dor e beleza se emparelham, são frutos de uma mesma nota dessa harmonia:

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta
(MUSA, pág. 17)

Numa leitura personalíssima eu arriscaria me aproximar de Cecília Meireles ao ler os versos de Sophia. A competência estética em temáticas dilacerantes pode ser equiparada em ambas. Em ‘A estrela’, segunda parte da obra, o inefável se torna vigoroso. O poema que dá seu título a esta parte do livro, guia a leitura dos que seguem. (Em alguns momentos desta resenha preciso me conter para não desfiar os versos por inteiro, tamanha a beleza e o convite). O que chamo de cabralino é a herança do ofício de João Cabral de Melo Neto (posteriormente descobri que o autor brasileiro era correspondente da autora), deleite que ecoa nestes versos:

               NO POEMA
Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar a decadência morte e ruína
O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa

(pág. 32)

Pedra lapidada ao longo de um trabalho matemático, bem calculado, beleza em um cerne clássico, atemporal. O desfile de possibilidades bem colocadas no papel, os ecos de vozes que guiaram a elaboração de um trabalho tão delicado/dedicado. 
Na terceira parte, ‘As grades’, Sophia traz o retrato do pranto, da pátria num perfil real cantado em solidez:

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável
[...] 
(PÁTRIA, pág. 57)

Doloridas páginas se prolongam até o encerramento desta obra num posfácio lúcido e grandioso, fruto das palavras proferidas pela própria autora em razão da premiação recebida pelo ‘Livro sexto’. Vou encerrar esta resenha me sentindo incompetente na árdua tarefa de desenhar o que foi a leitura destes poemas, e por fim deixo a mais conhecida e marcante citação desta obra:

                    INSCRIÇÃO
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

(pág. 43)


Livro Sexto, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Caminho Editorial, 80 páginas.

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